quarta-feira, 22 de junho de 2011

ELEGIA

De repente,
O fim.

Irrompera-se-lhe   sob a face magra
Dores que não pudera querer
“por que, meu Deus, por quê?”,
gritava o miserável,
a tristeza se lhe havia tomado
o desejo de viver.
“Por que, meu Deus, por quê?”
Maldita melancolia!
Dor num’alma fria,
Lápide de mármore, gelada
...a pele enrijece – sente o frio.
A noite é fria.
Os corpos mortos são frios.
A tez dos ossos é fria.
E na frieza daquela noite
suas pálpebras desciam...
já banhadas de sangue, há tempo.
Pobre miserável sentia
A lenta agonia tomar-lhe
A’lma vazia: repleta duma chama
que já não sentia.
 Tudo ali geava – noite estava alta
– neve em pradarias...
Que dizer?
“Por que, meu Deus, por quê?”
Dura pergunta vazia cuja
Resposta jamais saberá;
E’nquanto isso sentia
Definhar-se seu peito...
Lenta agonia de quem morre
Pouco a pouco. Agoniza.
O sangue lhe encharca os pulmões
a respiração lhe era difícil.
Descera-lhe a bile negra.
Tudo estava ficando calmo...
O copo caíra-lhe das mãos,
Quebra-se no chão vazio, agora repleto de vidros,
Que seus pés pisavam,
O veneno borbulhava-se dentro dele...
O sangue s’escorria pelos olhos, boca, nariz;
A morte chegava
e ele sentia que a dor já se ia,
sentia-se anestesiado como quem dorme...

De repente,
o fim
[imperceptivelmente].

Mario Filipe dos Santos, Junho de 2011.
Ao som da Canzonetta (Andante) de  Tchaikovsky...

A estudante de Letras



   D
epois daquela informação que me pedira passamos a travar um tímido diálogo cortado e bordado de silêncios freqüentes, dentro do ônibus.

            Em seus óculos brilhavam três letras que pareciam ser suas iniciais grafadas. Ela pensava letras, falava letras, engolia as que não queria dizer e ruminava as letras aproveitáveis... Após curto tempo de longa curiosidade lhe disse:
– Vejo que você é estudante...
– É, sou. (Quatro letras apenas: estava economizando)
– O que cursas?
– Letras...
            E daí não se agüentou mais, começou a falar do curso de letras, das letras do curso de letras, das letras que sabia e das letras que ainda aprendia, das letras faladas e das letras já mortas, tudo eram letras!
            Seus óculos refletiam as letras dos outdoors na estrada. Sua blusa branca tinha um arranjo de várias letras ora dizendo algo incompreensível, ora simplesmente dizendo nada e tudo ao mesmo tempo. Seu cérebro de instante em instante organizava as letras pronunciadas e as que se pronunciariam. Perguntou-me o curso que pretendia, percebia por meu fardamento escolar que fazia o último ano do ensino médio. Nossa farda era preta com as cores do colégio, o nome de nossa área pretendida e um número 3, indicando o terceiro ano. Respondi-lhe: “Direito”. Ela olhou-me longamente enquanto as sete letras da magistral palavra D-I-R-E-I-T-O lhe perpassaram a mente. Fez-se silêncio. Daí ela me disse:
– Um bom curso... Ótimo, aliás! ..., mas por que não letras?
            Senti-me tão enfeitiçado por aquelas letras que me perguntei lá no fundo: “É, por que não?”
            – Não! Respondi com a força do instinto atiçado pela razão, repentinamente... Quase que ela caía da cadeira do susto que tomara.
            – Por quê? Perguntou-me.
            – Direito tem sete letras e...
            – Letras..., tem apenas seis. Disse-me cabisbaixa como que vencida pelas próprias letras.
Cá pra nós, havia várias razões para escolher o Direito a letras, meu próprio sonho, por exemplo, etc. etc. etc., todavia o que não havia era outra forma de vencer aquela louca a não ser por aquilo que ela mais gostava: as letras. Pouco mais tarde, já na Faculdade de Direito do Recife, aprendi que o melhor modo de argumentar era do modo que mais tocasse o ouvinte... Lembrei-me daquela ocasião e da estudante de letras. Senti-me orgulhoso. Foi minha primeira vitória no discurso. Vencera por meio das letras a estudante de letras!
Mario Santos, Nov. 2009 – Jan. 2011.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

A loucura do professor Oswaldo

(Crônica às aulas de matemática do ensino fundamental)

O
 Professor Oswaldo era meio maluco. Havia quem dissesse que o pobre diabo era completamente “tan-tan” do juízo. A verdade é que ele era espirituoso de tal modo que quando se excedia tinha uns ataques de loucura! Sempre iniciava as aulas de matemática dizendo: “Deus...”, essas quatro letras arranjadas de modo tão grandioso aos ouvidos, soavam de seus lábios com uma intensidade tão forte que jurávamos poder ver suas cordas vocais pularem da garganta. Após essas quatro letras, que compõem tal temível e venerável palavra, seguia-se um silêncio sepulcral composto aqui pelas reticências: “Deus... fez o mundo com formas geométricas perfeitas! Ele, o todo-poderoso, é o primeiro e supremo, sublime matemático. Sua perfeição representa a própria matemática, perfeita em si... Deus é a matemática e eu... sou o seu magnífico anunciador, aquele que vos trás, a vós leigos, sem luz, as boas novas dos cálculos...”
            Aquilo dava um discurso horrível!
            Sabíamos que o divino não poderia ser de todo matemática, afinal, como víamos no livro de capa preta das aulas de religião, ele ama suficientemente os homens, se preferisse mais a exatidão dos cálculos à humanidade, imperfeita e inexata em si, teria criado a primeira bomba atômica, naturalmente, com seus cálculos e explodido os miolos de todos esses presunçosos como o professor Oswaldo.
            Ficávamos geralmente atônitos e com ares de espanto na sala de aula, enquanto o professor de matemática deslizava pelo quadro com seus esquadros, réguas e transferidores... A propósito, ele lembrava outro professor de matemática que tivemos, não menos louco, que falava sozinho e detestava quando dávamos como resposta ao final de uma equação “nada”, no lugar de “zero”, dizia: “O nada não existe, deixem sua reflexão inútil aos filósofos! Matematicamente se diz ZERO!”, e principalmente quando desenhávamos figuras entortadas no quadro negro, justificando-se pela exatidão da matéria! 
            No fundo, eles gostavam mesmo era daqueles rostos emburrecidos, leigos e assustados que confusamente os contemplavam nas horas de suas aulas, como quem contempla o abismo em que tem que pular... Deveriam se sentir como um Albert Einstein palestrando para inexperientes!
            Verdade é que aquela aula durava uma eternidade! Quando por fim, tocava o sinal de saída, estávamos todos saturados e um pouco contagiados com a loucura do professor Oswaldo.
Mario Santos, Dezembro de 2009.  

Desejo

Tudo o que desejo
De mim para mim mesmo
É passar sem abarcar
Lugar algum

Vagar no mar escuro
Da noite estrelada
E não sentir falta
Da visão dum porto...

Passar como o vento
Doido, lado a outro
Como o cão que gira atrás do rabo
Que foge dele, estando nele mesmo...

Ser aquele navio,
 sem âncoras,
fantasma – assustadoramente belo:
livremente...
Mario Filipe dos Santos, 18 de Agosto de 2009.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Um Conto: Elegia dum amor perdido


“L’amour, na point de moyen terme: ou Il perde, ou Il salve”
Victor-Marie Hugo.

    O
 amor é daquelas coisas que se sente, mas que não se racionaliza. Ele bem sabia disso, mais que ninguém, diria até, cometendo uma generalização perigosa, claro, mas o fato é que tanto sabia, que seria capaz de ir até o inferno para recuperar o tempo perdido, para reaver o amor que a fraqueza lhe tinha levado embora.
            “O espírito é forte, mas a carne é fraca”... Aquele sermão tinha movido com ele profundamente no domingo anterior. Havia sido apenas mais um repetitivo convite de sua mãe para freqüentar a igreja onde ela encontrava conforto para superar a morte de seu marido. E ele aceitara. Por que aceitara? Vivia repetindo a tese de Marx para a sua mãe: “Mãe, ‘a religião é o ópio da humanidade!’ Sai dessa dona Virginia!”, ao que a velha de seus lá sessenta anos respondia: “Filho, se a religião é um ópio, deveriam legalizá-lo pois é dos bons”, ao que ele retrucava: “O que a senhora sente, mãe, é meramente um conforto temporário, depois tudo vem de novo, e daí já está a senhora lá de novo se ajoelhando, que saco!”. Aquilo rendia tempo suficiente para ambos se renderem pelo cansaço, mas a dona Virginia já havia aprendido a técnica de guerra dos protestantes e dava a última palavra convidando seu filho à sua igreja. E ele fora. Por que afinal de contas? O que o levaria ali? Lugar de pessoas que precisam ou que se sentem confortáveis abstraindo a vida concretizando os dogmas, não era isso que ele sempre pensara? E então? Ele estava mesmo era mal, e indo de mal a pior, o que é sempre lastimável. Não tinha mais saco pra dizer um “não” à sua mãe, afinal era pra ela que ele corria nesses dias, sua fiel escudeira.
            Aquele sermão, contudo, tocara-lhe o coração. Não era sinal de conversão ao protestantismo, não era mesmo. Não era desses. Como dizia sua avó, era “osso duro de roer”, e sendo assim, não se incomodava fácil com joguinhos psicológicos, típico dos pastores daquelas igrejas. Fato mesmo é que tinha certeza que sua carne havia sido fraca, e muito fraca... Ora, mas o que fazer? Já estava feito. Como dissera cristo na cruz: “está consumado” e o que se consuma não se pode tornar atrás, nunca. Contudo e muito embora tudo já estivesse feito e nada lhe adiantasse remoer o assunto, ele lhe vinha à mente nostálgica como uma turbação, uma espécie de bloqueio psicológico que lhe lançava num plano paralelo suficiente para não ter mais noção de si mesmo, quiçá de outrem. Ficava naquela droga durante horas, alienando-se... Entrava muitas vezes em transe, poderia dizer até que penetrava no cosmos, mas não encontrava Deus lá, encontrava a si mesmo enquanto se perdia no imenso vazio. Ela havia confiado nele... Ele sabia disso, sempre soube. Sempre soube...
            Enquanto cumpria o pastor protestante a sua, dita imparcial (apenas dita, claro), exegese, ele pensava no quanto poderia ter evitado aquilo tudo, e como! Um “não”! Era só dizer um daqueles “nãos” terríveis, que gelam quem os escuta. “Não, não posso mesmo! Amo e sou amado, procure outro!” Teria sido retumbante, ele imaginava a todo o tempo suas expressões dizendo aquele “não” e a reação daquela... Não, não devia ficar pensando essas coisas! Já havia pensado num palavrão horroroso dentro duma igreja, isso era um sacrilégio! Sua avó costumava dizer que sacrilégios só se cometem dentro duma igreja católica. E ele jurava que ela estava com isso criticando sua própria igreja. Achava aquilo irônico, sagaz da parte dela. Mas um dia quando resolveu que ela explicitasse essa ironia de forma menos sutil, qual não foi sua surpresa: com aquela voz rouca, lhe dissera sua avó que sacrilégios só se cometem dentro de uma igreja católica porque na protestante se pode de tudo! Era o cúmulo da auto-propaganda aquilo. Mas, ele sabia abstrair esses saltos de radicalismo que encontrava dos dois lados da casa. Pena esse mesmo radicalismo ter tomado as duas mulheres de sua vida: sua mãe e sua avó. Havia uma terceira, é claro, na verdade, houvera...
            Aquele sermão já estava rendendo bastante. Todos se esticavam nas cadeiras... Ele continuava a divagar, mas agora com um resultado mais positivo, havia se colocado fora de dúvidas que aquilo não havia sido culpa dele. Não, não podia ser. Ele havia sido vencido pelo cansaço. Ela também, com aquele seu fundamentalismo da virgindade! Tinha sido terrível agüentar por tanto tempo. E daí chegara a Márcia...
 Márcia! Como eram boas suas lembranças da Márcia... Era uma mulher gostosa, em todos os sentidos da palavra, ele a havia provado, saboreado, babado, feito tudo que podia ser feito e de todas as formas possíveis e prováveis. Márcia era gostosa. Só isso. Nada além disso. Dela ele recordava os seios volumosos e eriçados, o corpo, o bum bum, as pernas grossas, “ai! era muita coisa de bom”, pensava consigo...
 - Amém, irmãos? Gritara de repente e com vigor o clérigo. Ao que todos de súbito responderam:
- Amém!
Ele havia se surpreendido excitado no banco da igreja ao lado de sua mãe! Que miserável seria capaz de ofender assim a casa de deus? E de fato, faltava pouco para que ele ejaculasse só em se lembrar da Márcia. Pois é, sua carne estava sendo mais uma vez fraca! Márcia era uma verdadeira meretriz, prostituta de araque! Miserável que havia lhe tomado o amor de... Parara no tempo. Não conseguia pronunciar o nome que divinizava. Não era digno. Nunca somos dignos frente a uma divindade, seja qualquer que for, pois nunca seremos divinos. Ele se esquecia disso e divinizava a mulher de sua vida, cujos lábios beijara com ardor, mas que hoje, crisparam-se de sua face de repente. Ela pulverizara-se na névoa do desgosto. Chorara rios de lágrimas amargas, ele soube. Mas após toda essa de-pressão, havia se conformado e apagado ele da mente, como quem apaga uma fogueira que queimara longo tempo, usando um balde de água fria. Chuááááááá! Ele agora sentia o frio daquela água...
De súbito, acordara um pouco de seu sono mordaz e vira um movimento diferente no templo, era uma espécie de eucaristia, ou como dizem os protestantes “santa ceia do senhor”, sua mãe cantava alto os hinos de seu livrinho, aberto nas mãos trêmulas. Ele olhara para ela sorrindo marotamente. Sua mãe lhe respondera rindo também, ao passo que seguia cantando. Peraí, ele a vira! Ele... não é possível! Arregalou os olhos pra confirmar... Estava sonhando. Estava ficando louco. Precisava era sair Dalí. Não era a Kate, era apenas sua mãe cantando e sorrindo, com aquele seu jeito meigo que tanto o fazia recordar da... Kate.
Levantou-se, despediu-se de sua mãe e se retirou do recinto. Lá fora vira a luz do sol. Estava claro aquele dia que teria de ser de chuva! Meteorologia erra, é ciência, não teologia. A luz do sol já lhe fazia um mal à cabeça que se uniria àqueles pensamentos nefastos. Estava com uma dor de cabeça daquelas. Saíra daquele lugar, que pouco a pouco lhe causava repulsa, não mais poderia estar ali e pensando nela... Ele precisava fazer alguma coisa imediatamente. Kate! Ah, Kate! Com sua voz meiga e seu sorriso maroto, seus lábios finos, seu rosto desenhado por um da Vinci! Ah, quão bela e dócil era a Kate, “a nora que eu pedi a Deus pra cuidar de você”, lhe lembrava sempre sua mãe, antes daquilo ocorrer, claro. Sua mãe havia ficado desgostosa de tudo, e o que é pior, apegara-se ainda mais ao credo, ele sempre via aquilo tudo com suspeita, herdara essa forma de pensar de seu pai, que fora um grande pensador, e ao mesmo tempo um cético inveterado. Fato é que sua mãe se abalara duas vezes, uma com a morte de seu marido, amor de sua vida, outra com aquilo, a traição de seu filho à possível mulher de sua vida.
“Meu filho, não se vive de sexo, embora seja o sexo algo muito bom, realizador, revigorador, regenerador de amores, quando há amor antes dele, claro. O que quero que você saiba e saiba com responsabilidade é que nós podemos transar sem amar, contudo no fim das contas nos sentimos um lixo, e sabe por quê? Por que antes do sexo deve estar o amor, sim, o amor é a conditio sine qua non do sexo, o que o torna belíssimo, utilíssimo. Imagine você um maestro sem as mãos, um Beethoven sem os ouvidos...”
“Mas pai, pelo que eu saiba, Beethoven perdera a audição na idade adulta pouco a pouco e continuou compondo magistralmente!”.
“Sim filho, é verdade, contudo sua composição era triste. E foi triste até o dia em que não podia mais ser, e aí Beethoven morreu. Você pode viver sem amar, mas um dia o amor dento de você pode morrer, filho, e de vez”.
Aquele diálogo com seu pai ficara gravado em sua mente desde sua adolescência, tinha um ótimo pai, isso é verdade. Aquelas últimas palavras, contudo, lhe ficavam ressoando na mente: e aí ele morreu. Precisava fazer alguma coisa logo. Lembrava-se da última vez que tentara explicar tudo para a Kate, ela lhe olhara com outros olhos, com olhos de rancor, de ira, de ódio, lhe mandara ficar com a outra, pois ela não era mulher para homem como ele. Amaram-se por tanto tempo e terminar assim... Ela não era muçulmana, mas virgindade para a cultura de sua família era essencial, e ele era virgem, dissera que se guardara para ela, até que lhe apareceu um dia no barzinho que costumava ir com uns colegas, a Márcia que num momento lhe fora apresentada, no outro sentara em seu colo e no outro... já estava na cama dum hotel com ele. A Márcia o encantara de tal modo que passara dois meses seguidos viajando com ela em praias desertas onde transavam dez horas por dia. E era só aquilo, só prazer, só o que seu pai lhe havia dito, só o sexo pelo sexo, depois dos dois meses se sentiu um prostituto, nas mãos duma prostituta e resolveu sair daquela vida e voltar para a Kate. Como? Estava sem noção, como se estivesse no seu direito e na sua despedida de solteiro, que durara dois longos meses! A Kate, já fora motivos de piadas, já chorara bastante, mas agora estava dura como uma pedra e resolvida de sua vida: seria feliz, era seu direito.
Passara-se um ano e ele sempre corria atrás da Kate, mas ela, sempre firme, lhe evitava, não mais lhe queria, não mais lhe amava, o amor tornara-se ódio, o ódio fizera perder, tudo para sempre... Estava consumado.
Ele precisava fazer alguma coisa e faria. Estava determinado, resoluto, nada mais o abalaria, aquilo afundar-se-ia num passado que se passaria, afinal de contas é típico do passado o simples passar. Já não via a Márcia faz tempo, ele não interessava mais. Quanto a Kate, Deus! A Kate! As lágrimas lha caíam dos olhos árduos e vermelhos, inchados já estavam da dor. Sua mãe... Ele precisava. De fato, o faria, era homem o suficiente para aquilo. Pegara um taxi, chegaria mais rápido ao destino...
O taxi parara frente a um prédio enormemente grande, era a Sudene, na BR-101 sentido sul, próximo à Universidade Federal de Pernambuco. Subira as enormes escadas da frente se dirigindo à portaria.
- Bom dia, seu Alex, como vai? Disse o porteiro.
- Vim vê-la. Ela está aí, você sabe?
- Quem? Ah, a dona...
- É, Bernardo, ela mesma, está ou não está?
- Sim, como o senhor sabe, está em expediente, no ante-penúltimo andar, o senhor pode a esperar na recepção.
- Ela me mandou chamar, me autorize a subir.
- Mas se ela lhe mandou chamar quem tem que autorizar é ela! Vou ligar pro ramal dela...
- Ande homem, deixe de besteiras, ela me mandou subir.
- O senhor está bem?
- Você é médico? Ande logo com isso não agüento mais esperar.
- O que está havendo, senhor Alex? O senhor pode me dizer? Não posso lhe mandar subir assim, até porque o superintendente está em visita hoje e, sabe como é não é?
- Bernardo, pelos velhos tempos, você me faz um favor, eu lhe faço outro; você me deixa subir, eu lhe recompenso mais tarde, naquele barzinho.
- Quanto?
                - Mil! Falara o primeiro número que veio à mente.
            Bernardo se encantara com aquele número e todos os seus zeros. Imaginava-se livre de certas dívidas, Ah, coisa boa!
            - Como queira senhor Alex, pode subir, pode subir!
            Alex subira, havia pego o primeiro elevador que abrira as portas no térreo, eram muitos andares e por mais rápida que fosse a máquina ele se angustiava, se arrependia, queria descer, não queria mais continuar com aquilo. “Força, homem, força! Es muss sein, es muss sein!”, repetia aquilo vorazmente ao passo que se lembrava quando seu pai a pretexto de lhe dar a aula de piano no dia em que ele queria assistir a um jogo de futebol na casa de colegas, lhe repetira freneticamente as palavras de Beethoven, de quem ele era fam: “Es muss sein, filho, es muss sein!” o que significava: “É preciso, sim, é preciso”. Dava-lhe pouco a pouco uma dor no estômago, uma angústia no peito... Ele começara a chorar e chorar amargamente. Era preciso, droga! O elevador parara. Era o ante-penúltimo andar daquele prédio monstruoso. Sua mãe... Mas era preciso. Respirou fundo. Será que seria bom vê-la? Não!
            Andara alguns passos até a sacada. A paisagem era bela. O Recife diante de si, ao menos uma parte dele. Do outro lado o Hospital das Clínicas, a Universidade, a vida. As pessoas seguindo seus caminhos diversos, os passantes... Era preciso. Ela não mais o amara. Ele não mais se amara, não como antes. Isso era por amor à sua própria vida...O vento batia-lhe na face ressecada.
            - Mortos não pagam dívida, Bernardo!
            Dito isso saltara do prédio a baixo. O vento batia-lhe na face com força, a gravidade puxava-lhe para baixo como um polvo puxa a presa que agarra... O chão! Fechara os olhos...
            ... Está consumado.

            No chão todos se ajuntavam para ver o infeliz. “Ele se suicidou!”, “Meu Deus ele se suicidou!”, “Isso é um crime!”, “Isso não é um crime, a quem devemos aplicar a pena, seu jeca? Ele está morto, pena capital!”. O Bernardo emudecera telefonara à pressas para o celular de dona Márcia.
            - Mas ele disse que queria falar com a senhora! Disse que a senhora o havia chamado!”
            - Bernardo ele veio aqui se matar, não falar comigo, usou isto como álibi para entrar sem maiores problemas, deixemos essa história na surdina, a polícia já já poderá levantar inquérito se a família achar que não questão de suicídio. Eu não quero comprometer meu trabalho, não posso. E até porque, você seria penalizado. Esqueçamos isso, ele se foi. Mortos não falam, nem pagam suas dívidas.
            Bernardo emudecera mais uma vez, se tocara que não receberia dinheiro algum. “Infeliz!” dissera rangendo os dentes.
            Da sacada, Márcia olhava a multidão as ambulâncias e a polícia, também aquele corpo disforme e esbugalhado no chão. De súbito sentira a culpa por aquilo tudo, sim era dela a culpa, dele também, mas ela tinha sua parcela, percebera que quanto mais olhava o abismo, mas ele, o abismo, olhava para dentro dela. Retirou-se.
            “O amor não tem meio termo: ou se perde, ou se salva”.

Mario Filipe dos Santos, Maio de 2011.        

Poema herege



Não há maior pecado no mundo,
Do que enterrar o latente presente
Na busca dum futuro ausente
Que sequer existente, temos certeza de ser

Deixai fazer, deixai passar!
A vida mesma de si cuidará.
Ama, pois, o agora. Tudo é o momento.
Niilismo? É tudo além disto.

Mario Filipe dos Santos, 2010.

Crônicas de Primeira Viagem: O causo do demo


“O mito é o nada que é tudo”
Fernando Pessoa.


   E
ra noite de sexta-feira treze, todo mundo sabe o que significa isso. Significa tudo e nada ao mesmo tempo. No interior, é noite maldita, como eles dizem “mardiçoada!”, no Recife poderíamos dizer que, por ser sexta-feira, é mais uma noite de consolação pra quem trabalha feito um louco durante a semana, dia da “madeira” como se diz, isto é, noite de se divertir, beber, “encher a cara!”, ou seja, tudo de bom. Quanto ao ser treze a data, não há muito que se dizer disso, afinal de contas, o capitalismo ainda não inventou nada para vender em especial nesse dia. Simplório o capitalismo. Mas no interior, a data é coisa séria. Lá pras bandas de Umarí ou São Vicente, costumam ocorrer muitos quiproquós numa noite como esta. Para piorar as coisas ainda mais, a lua estava tão cheia e amarela...
 – Isso aí é causo do demo, dizia seu Zé da viola, na calçada de casa, para umas senhoras religiosas muito devotas de nosso senhor, e continuava: É causo de se alarmar! A lua, Deus a fez branca, mas o demo que tudo entorta faz com que a pobre fique amarela a contra gosto de Deus, da cor do sangue venenoso do mardito!
 – Virge santa!
            – Ave Maria! Vixi! Com um causo desse nós num pode ficar por aqui, pode?
 – Não pode, não. Dizia taxativo o velho homem com seu violão abaixo do braço esquerdo e o direito a segurar o cachimbo herdado de seu avô, para depois continuar o falatório: Um primo meu, lá das bandas de Sirigi, disse que viu numa noite dessas um bicho muito do estranho andando de duas patas tentando se passar por home pra querer entrar na igrejinha da cidade...
            – Virge santa!
 – Ave Maria! Continue seu Zé, faz favor, continue. Estava morta de curiosidade a das Dores, enquanto que a Zefina apenas ouvia com os olhos esbugalhados e um aperto no coração.   
 – O disgramado era esperto, continuou o velho empolgado, em vez de o endiabrado vir pelos lados do mercado e da praçinha como tudo que é gente faz, veio pelo lado duma ponte de pedra que lá tem, por cima do canal da cidade, como quem vinha de fora, lá da estrada de São Vicente...
            – Aié, é? E veio mermo de São Vicente o disgramado?
– Que nada! Cês num ouviro o padre Antonio na missa de ontem não, foi? O bicho ruim é mentiroso e tinhoso demais pra ser sincero, ele engana! Teve gente que disse que o coisa ruim tinha vindo da rua da escola que fica por trás daquela igreja dos crentes e vai dar lá na cachoeira...
– Dever ser coisa dos crente!
– Que é isso muié? Tás doida é?
– Oxente! Ocê num ouviu o padre Antonio na semana passada, não? Ele disse que esses protestantes, crentes, tão com nada e tem parte com o demo! Só pensa em dinheiro e que a santa madre igreja pensa em tudo menos na avareza do dinheiro.
– É verdade, disse pensativa a Zefina que só prestava atenção e mais nada até agora.
– Pode ser, mais o fato é que o demo chegou até a porta da igreja que fica bem no meio da praça e disse a um fiel de nossa senhora que tinha ido buscar o Damião, e despois foi embora, se arredou de lá...
– Embora?
– Pra donde?
– Num se sabe. Ninguém sabe. Despois de dois dias, o Damião apareceu morto lá pras banda de Paudalho, tinha ido arresorver uns problema e de lá num saiu.
– Morreu de quê? Perguntara ofegante a das Dores.
– É, de quê? Imitara a Zefina.
– O delegado da região mandou o inquérito pro juiz dizendo que se tratava de ritual satânico.
– Ave nossa senhora de Lourdes, das Dores e de Fátima!
– Ave, Ave!
– Pois é muié, ocês tem ainda arguma dúvida de que é noite muito mardita essa?     
            Dá para se ver que elas estavam por muito convencidas do causo. Seu Zé, feliz por ter convencido esboçava um sorriso maroto de satisfação inconsciente, não sabia o porquê daquele sorriso, pois ele mesmo cria no que dissera, ao menos assim lhe parecia.
            A lua subia ainda mais e tomava o céu, clareando cada vez mais a cor do brilho que a ela o sol emprestara. Os três cidadãos interioranos já não estavam mais tão à vontade com aquilo e os cachorros da vizinhança já começavam a latir sem parar e uivar.
– Zefina! Das Dores! Isso num é normá!  Alertara o velho quase se borrando de medo e já de pé, pensando com muita precisão que qualquer movimento estranho que pudesse ocorrer do lado da mata, iria dar no pé e deixar as beatas pro demo.
De repente, ouvi-se um gemido na direção da mata. Do nada um grito!
            – Jesus, Maria e José! Vamos embora bando de muié besta! É o demo!
            Levantaram-se as duas senhoras num salto só e saíram a correr pela rua de pedra até chegar cada uma a sua porta, entrar e fechá-la com arroubos atrás de si. O seu Zé? Já estava em casa assim que alertara as damas. Aquele lá corria que era uma beleza, havia ganho vários campeonatos de corrida no colegial, e, quando jovem, passara por um longo sufoco para provar à comunidade que suas habilidades não eram sortilégios do demo. Por isso havia estudado muito tempo com o padre da região, para poder se defender na praça pública, desde então, em matéria de demonologia, qualquer um ia buscar sua ajuda para tentar assim desafogar a igreja nas horas do confessório.
            A rua ficara deserta. Num silêncio sepulcral. Todos os que fora estavam entraram sem demora ao ouvir gritar o especialista, afinal, era sexta-feira treze, todos só haviam saído porque seu Zé também saíra, e se ele entrou, já era chegada a hora de todos entrarem...
            É impressionante a crença. Seduz, faz crer e depois aprisiona.
            Com poucos minutos do acontecido saía da mata o Pedro Lourenzo, que era uma espécie de Pedro Malazarte da região. O pobre saía com uma cara de alívio tão bom, tão impressionante, sentia-se como se tivesse ganho na loteria, embora não fosse esse o caso, estava alegre do mesmo jeito, é que depois de três semanas sem evacuar, por conta de seu problema de prisão de ventre, conseguira quando fora à mata à caça de passarinho desobstruir o intestino grosso! Mais tarde os moradores souberam que o gemido tinha sido no início da evacuação e o grito quando o trem lhe saiu dos fundilhos!
            Que coisa aquela hein! Ainda dizem que nós somos a imagem e semelhança de Deus, nós os cagadores! Sim, por que qual é o ser humano que não evacua? Ora, que é isso! O papa evacua, a presidenta da república e também aquele professor arrogante da faculdade! Todos nós, unidos pela merda. Bem dissera o nobre Voltaire: “Tu, imagem de Deus, sentado em tua privada!”, talvez a mais provável verdade seja que Deus é que é a nossos olhos, inconscientemente, feito a nossa imagem e semelhança!
            Todavia, o povo todo da região, seu Zé da viola, dona Zefina e a das Dores, não notaram esse lado do caso, não chegaram a cogitar isto o que aqui e cá entre nós cogitamos você, leitor atento, e eu. A conclusão que todos tomaram dentro de suas mentes não se sabe, mas com certeza não fora a mais viável possível. Mais tarde e numa noite parecida àquela, ouvia-se o seu Zé dizer que aquela prisão de ventre do Pedro Lourenzo e sua conseqüente dor de barriga e evacuação na mata era coisa muito estranha, era um causo do demo. Segundo ele, isso era mais claro que o dia. Aquele passarinho caro e bonito que havia levado o Pedro pra dentre das matas só podia ser mensageiro do demo, o que o bicho ruim queria mesmo era comer das merdas do Pedro, o que segundo um tal padre exorcista que passava pela região é normal e muito bom até para o demo, afinal de contas, ele, o demo, tentava ser melhor ao mesmo tempo em que tentava imitar O criador, tanto é que fora fazer tal coisa para imitar a ordenança de Deus a Ezequiel que teria que comer pão de cevada tostado junto a excrementos, ou seja, merdas, de homens, e tiradas na hora! Dissera o tal padre até o texto para quem tivesse dúvida: Ezequiel cap. 4!
            Aquela explicação satisfizera a todos na região, menos ao Pedro que se sentiu de certo modo comido pelo demo. E foi assim que o acontecido muito bem explicado pelos fatores fisiológicos corporais, foi explicado, na preferência de todos como um causo do demo.
Mario Santos, Dezembro de 2010.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Noturno em dois atos

Noturno

Minha sombra às vezes vaga
Pela silenciosa rua de minha casa
Naquelas noites chuvosas
Nos instantes de estio
Quando a água que cai do céu
S’estira pelas calçadas molhando tudo:
O chão, os sapatos, meus pés...

Noturno em segundo ato

Meu corpo estático, semimorto...
Há muito, nessas horas, está estirado
No leito – caixão sem tampa, de quem dorme –
Desenfadando-se do dia,
Enfadando-se mais ainda de sonhos...
Sonho, sobretudo, caminhar lentamente
Como um’alma errante, dentro das calmas horas noturnas
Na rua silenciosa e molhada da chuva...
Mario Filipe dos Santos, Julho de 2009.

Lembranças da infância


“Era um prazer febril que ele sentia; esqueceu-se de tudo, pulou, saltou, gritou, rezou, cantou, e só não fez daquilo o que não estava em suas forças”
Manuel Antônio de Almeida, “Memórias de um sargento de milícias”.

  A
h, como belos eram os tempos da infância! Tempos em que brincávamos nas ruas noite afora, tempos em que nos escondíamos das mães aflitas nas horas de dormir, tempos em que nos exercitávamos no pega-pega ou no pique-esconde, no pega-macaco ou no pega-congelou, que pulávamos amarelinha altas horas até chegar ao céu! Triste saber o quanto já se foram tais tempos, hoje tão imemoriais quanto caretas para muitos desmiolados! Hoje as coisas são outras, muito mudadas, as crianças já crescem consumistas, isto é, chatas...
            O século XXI é o do império da tecnologia e seus avanços indeléveis. Avanços que trazem comodidade, que trazem conformidade, comodismo, preguiça, banhas e banhas nas barrigas, isto é que é verdade! Hoje em dia as crianças passam horas frente à TV assistindo os desenhos animados que avassalam todas as horas da manhã; depois passam a tarde inteira frente ao computador jogando mil e um jogos na net; depois comem alguma coisa bastante gordurosa e voltam para o computador até que seus pais, de orelha em pé, lhes tirem de lá a força, daí voltam para a TV para assistir um filme, e assim vai... Crescem gordas, chatas, com problemas oculares, sedentárias e terríveis para os bolsos de seus pais! Ahff! Mudemos de assunto, afinal esse status quo ridículo não é assunto desta crônica!
            Durante ainda a década de noventa as coisas de fato eram melhores, ou seja, mais produtivas. Lembro-me sempre que geralmente junto com meus primos e colegas brincávamos de pique-esconde, à tarde. Subíamos e descíamos todos os lugares possíveis, achávamos e bolávamos toda sorte de esconderijos, era muita ação! Péssimo ali, era ser o conta, isto é, o infeliz que nos tinha de achar! Éramos mafiosos, sórdidos, truculentos... Eu mesmo já havia aprendido a ser assim desde quando era café-com-leite – para aqueles que não viveram esta época e nunca saíram de frente do computador quando queriam brincar, vou traduzir a expressão muito simples acima dita: intitulava-se “café-com-leite” qualquer moleque que tivesse menos de seis anos, quisesse brincar, mas não soubesse contar, inventar com facilidade, ou mesmo ser ardiloso, esse guri, era protegido pela maioria, por isso nunca chegava a ser o conta ou pega, bom pra ele! Na época em que passei como café-com-leite aprendi muita coisa! Há, há, há! Aprendi a ser bom, muito bom na coisa, isto é, mau para o conta! Meus primos nem imaginavam que, como todo bom pupilo, viria a ser melhor que eles, os mestres. Sabia todas as suas tramóias, aprendi a pensar como eles, desenvolver um raciocínio rápido, aprendi a me esconder! 
            Entre nossas tramóias estavam: a) trocar de camisa para confundir o pega, ou conta, na hora em que nos ia bater, isto é, achar. Assim, por exemplo, ele via de longe alguém se esgueirando num esconderijo com minha camisa, daí gritava: “Batida, Mario!”, e aí era uma zona! Saíamos todos de onde estávamos gritando esbaforidos: “Errou, bobo, errou, pecado grave!”, “Julgou pela aparência, há, há, há!”, daí eu aparecia com a camisa do colega, e ele com a minha! Era ótima a sensação de enganar o pobre diabo que tinha que contar de novo! b) junto com a tramóia da troca de camisas estava a da isca, isto é, um colega ficava à vista do conta, mas de costas e coma cabeça baixa, por ele não confiar mais nas roupas, chegava bem perto para saber quem era, e daí do outro lado alguém corria o mais rápido que podia, geralmente eu, e batia na mancha (o lugar onde o pega contava de olhos fechados até 31 enquanto nos escondíamos), daí gritava vitorioso: “Batida! Todos salvos!” e o pobre diabo tinha que contar de novo! c) ainda havia outra, de mil artimanhas: o tour! Consistia em fazer com que o conta desistisse de nos procurar por não nos achar de modo algum. Na verdade essa era uma vingança que gostávamos muito de praticar com crianças chatas ou rivais. Lembro-me de ter feito isto junto com meus primos e colegas certa vez com um carinha da escola que estava me enchendo! Muito irônico e falso lhe chamei para brincar conosco à tarde, fiz uma propaganda atraente repleta de argumentos irrecusáveis: “Todos vão estar lá. O Diego, o Felipe, o João, todo mundo. Eles estavam querendo saber se tu és homem mesmo ou se tens medo da coisa!” Isso bastava, o guri enchia o peito e dizia: “Estarei lá.” Daí era uma gozação, todos chagávamos antes dele e, quando ele chegava tinha de ser o conta por ser o último; enquanto ele contava, íamos embora para a casa de um de nossos primos que ficava na rua do outro lado da que morávamos, jogar baralho ou damas e o pobre gastava toda a sua tarde nos procurando, daí se cansava e ia chorando pra casa! Tempos bons!
            Bom mesmo era a sensação de correr o mais que se podia para se esconder do conta que já estava ali atrás, correndo, tentando nos achar. O vento nas fuças, o peito agitado, o coração batendo freneticamente, o suor escorrendo, a vontade de fazer xixi e ter que prender: “Agüenta, Mario, agüenta, não vai nos entregar aqui, hein!”, tudo aquilo era ótimo, menos o xixi, claro! Virávamos a tarde. Quando mamãe me chamava, a maioria das mães também chamavam os guris, baita tristeza, “já tá na hora de entrar?!”. Voltávamos suados, terríveis, para casa, muitas vezes abraçados e brincando. Uma certeza nos unia a mente: no outro dia, após a escola e o dever de casa, tinha mais!
            Lembranças boas essas, de uma infância que se passou, ficou na memória.     

Mario Filipe dos Santos, Abril de 2011