terça-feira, 7 de junho de 2011

Um Conto: Elegia dum amor perdido


“L’amour, na point de moyen terme: ou Il perde, ou Il salve”
Victor-Marie Hugo.

    O
 amor é daquelas coisas que se sente, mas que não se racionaliza. Ele bem sabia disso, mais que ninguém, diria até, cometendo uma generalização perigosa, claro, mas o fato é que tanto sabia, que seria capaz de ir até o inferno para recuperar o tempo perdido, para reaver o amor que a fraqueza lhe tinha levado embora.
            “O espírito é forte, mas a carne é fraca”... Aquele sermão tinha movido com ele profundamente no domingo anterior. Havia sido apenas mais um repetitivo convite de sua mãe para freqüentar a igreja onde ela encontrava conforto para superar a morte de seu marido. E ele aceitara. Por que aceitara? Vivia repetindo a tese de Marx para a sua mãe: “Mãe, ‘a religião é o ópio da humanidade!’ Sai dessa dona Virginia!”, ao que a velha de seus lá sessenta anos respondia: “Filho, se a religião é um ópio, deveriam legalizá-lo pois é dos bons”, ao que ele retrucava: “O que a senhora sente, mãe, é meramente um conforto temporário, depois tudo vem de novo, e daí já está a senhora lá de novo se ajoelhando, que saco!”. Aquilo rendia tempo suficiente para ambos se renderem pelo cansaço, mas a dona Virginia já havia aprendido a técnica de guerra dos protestantes e dava a última palavra convidando seu filho à sua igreja. E ele fora. Por que afinal de contas? O que o levaria ali? Lugar de pessoas que precisam ou que se sentem confortáveis abstraindo a vida concretizando os dogmas, não era isso que ele sempre pensara? E então? Ele estava mesmo era mal, e indo de mal a pior, o que é sempre lastimável. Não tinha mais saco pra dizer um “não” à sua mãe, afinal era pra ela que ele corria nesses dias, sua fiel escudeira.
            Aquele sermão, contudo, tocara-lhe o coração. Não era sinal de conversão ao protestantismo, não era mesmo. Não era desses. Como dizia sua avó, era “osso duro de roer”, e sendo assim, não se incomodava fácil com joguinhos psicológicos, típico dos pastores daquelas igrejas. Fato mesmo é que tinha certeza que sua carne havia sido fraca, e muito fraca... Ora, mas o que fazer? Já estava feito. Como dissera cristo na cruz: “está consumado” e o que se consuma não se pode tornar atrás, nunca. Contudo e muito embora tudo já estivesse feito e nada lhe adiantasse remoer o assunto, ele lhe vinha à mente nostálgica como uma turbação, uma espécie de bloqueio psicológico que lhe lançava num plano paralelo suficiente para não ter mais noção de si mesmo, quiçá de outrem. Ficava naquela droga durante horas, alienando-se... Entrava muitas vezes em transe, poderia dizer até que penetrava no cosmos, mas não encontrava Deus lá, encontrava a si mesmo enquanto se perdia no imenso vazio. Ela havia confiado nele... Ele sabia disso, sempre soube. Sempre soube...
            Enquanto cumpria o pastor protestante a sua, dita imparcial (apenas dita, claro), exegese, ele pensava no quanto poderia ter evitado aquilo tudo, e como! Um “não”! Era só dizer um daqueles “nãos” terríveis, que gelam quem os escuta. “Não, não posso mesmo! Amo e sou amado, procure outro!” Teria sido retumbante, ele imaginava a todo o tempo suas expressões dizendo aquele “não” e a reação daquela... Não, não devia ficar pensando essas coisas! Já havia pensado num palavrão horroroso dentro duma igreja, isso era um sacrilégio! Sua avó costumava dizer que sacrilégios só se cometem dentro duma igreja católica. E ele jurava que ela estava com isso criticando sua própria igreja. Achava aquilo irônico, sagaz da parte dela. Mas um dia quando resolveu que ela explicitasse essa ironia de forma menos sutil, qual não foi sua surpresa: com aquela voz rouca, lhe dissera sua avó que sacrilégios só se cometem dentro de uma igreja católica porque na protestante se pode de tudo! Era o cúmulo da auto-propaganda aquilo. Mas, ele sabia abstrair esses saltos de radicalismo que encontrava dos dois lados da casa. Pena esse mesmo radicalismo ter tomado as duas mulheres de sua vida: sua mãe e sua avó. Havia uma terceira, é claro, na verdade, houvera...
            Aquele sermão já estava rendendo bastante. Todos se esticavam nas cadeiras... Ele continuava a divagar, mas agora com um resultado mais positivo, havia se colocado fora de dúvidas que aquilo não havia sido culpa dele. Não, não podia ser. Ele havia sido vencido pelo cansaço. Ela também, com aquele seu fundamentalismo da virgindade! Tinha sido terrível agüentar por tanto tempo. E daí chegara a Márcia...
 Márcia! Como eram boas suas lembranças da Márcia... Era uma mulher gostosa, em todos os sentidos da palavra, ele a havia provado, saboreado, babado, feito tudo que podia ser feito e de todas as formas possíveis e prováveis. Márcia era gostosa. Só isso. Nada além disso. Dela ele recordava os seios volumosos e eriçados, o corpo, o bum bum, as pernas grossas, “ai! era muita coisa de bom”, pensava consigo...
 - Amém, irmãos? Gritara de repente e com vigor o clérigo. Ao que todos de súbito responderam:
- Amém!
Ele havia se surpreendido excitado no banco da igreja ao lado de sua mãe! Que miserável seria capaz de ofender assim a casa de deus? E de fato, faltava pouco para que ele ejaculasse só em se lembrar da Márcia. Pois é, sua carne estava sendo mais uma vez fraca! Márcia era uma verdadeira meretriz, prostituta de araque! Miserável que havia lhe tomado o amor de... Parara no tempo. Não conseguia pronunciar o nome que divinizava. Não era digno. Nunca somos dignos frente a uma divindade, seja qualquer que for, pois nunca seremos divinos. Ele se esquecia disso e divinizava a mulher de sua vida, cujos lábios beijara com ardor, mas que hoje, crisparam-se de sua face de repente. Ela pulverizara-se na névoa do desgosto. Chorara rios de lágrimas amargas, ele soube. Mas após toda essa de-pressão, havia se conformado e apagado ele da mente, como quem apaga uma fogueira que queimara longo tempo, usando um balde de água fria. Chuááááááá! Ele agora sentia o frio daquela água...
De súbito, acordara um pouco de seu sono mordaz e vira um movimento diferente no templo, era uma espécie de eucaristia, ou como dizem os protestantes “santa ceia do senhor”, sua mãe cantava alto os hinos de seu livrinho, aberto nas mãos trêmulas. Ele olhara para ela sorrindo marotamente. Sua mãe lhe respondera rindo também, ao passo que seguia cantando. Peraí, ele a vira! Ele... não é possível! Arregalou os olhos pra confirmar... Estava sonhando. Estava ficando louco. Precisava era sair Dalí. Não era a Kate, era apenas sua mãe cantando e sorrindo, com aquele seu jeito meigo que tanto o fazia recordar da... Kate.
Levantou-se, despediu-se de sua mãe e se retirou do recinto. Lá fora vira a luz do sol. Estava claro aquele dia que teria de ser de chuva! Meteorologia erra, é ciência, não teologia. A luz do sol já lhe fazia um mal à cabeça que se uniria àqueles pensamentos nefastos. Estava com uma dor de cabeça daquelas. Saíra daquele lugar, que pouco a pouco lhe causava repulsa, não mais poderia estar ali e pensando nela... Ele precisava fazer alguma coisa imediatamente. Kate! Ah, Kate! Com sua voz meiga e seu sorriso maroto, seus lábios finos, seu rosto desenhado por um da Vinci! Ah, quão bela e dócil era a Kate, “a nora que eu pedi a Deus pra cuidar de você”, lhe lembrava sempre sua mãe, antes daquilo ocorrer, claro. Sua mãe havia ficado desgostosa de tudo, e o que é pior, apegara-se ainda mais ao credo, ele sempre via aquilo tudo com suspeita, herdara essa forma de pensar de seu pai, que fora um grande pensador, e ao mesmo tempo um cético inveterado. Fato é que sua mãe se abalara duas vezes, uma com a morte de seu marido, amor de sua vida, outra com aquilo, a traição de seu filho à possível mulher de sua vida.
“Meu filho, não se vive de sexo, embora seja o sexo algo muito bom, realizador, revigorador, regenerador de amores, quando há amor antes dele, claro. O que quero que você saiba e saiba com responsabilidade é que nós podemos transar sem amar, contudo no fim das contas nos sentimos um lixo, e sabe por quê? Por que antes do sexo deve estar o amor, sim, o amor é a conditio sine qua non do sexo, o que o torna belíssimo, utilíssimo. Imagine você um maestro sem as mãos, um Beethoven sem os ouvidos...”
“Mas pai, pelo que eu saiba, Beethoven perdera a audição na idade adulta pouco a pouco e continuou compondo magistralmente!”.
“Sim filho, é verdade, contudo sua composição era triste. E foi triste até o dia em que não podia mais ser, e aí Beethoven morreu. Você pode viver sem amar, mas um dia o amor dento de você pode morrer, filho, e de vez”.
Aquele diálogo com seu pai ficara gravado em sua mente desde sua adolescência, tinha um ótimo pai, isso é verdade. Aquelas últimas palavras, contudo, lhe ficavam ressoando na mente: e aí ele morreu. Precisava fazer alguma coisa logo. Lembrava-se da última vez que tentara explicar tudo para a Kate, ela lhe olhara com outros olhos, com olhos de rancor, de ira, de ódio, lhe mandara ficar com a outra, pois ela não era mulher para homem como ele. Amaram-se por tanto tempo e terminar assim... Ela não era muçulmana, mas virgindade para a cultura de sua família era essencial, e ele era virgem, dissera que se guardara para ela, até que lhe apareceu um dia no barzinho que costumava ir com uns colegas, a Márcia que num momento lhe fora apresentada, no outro sentara em seu colo e no outro... já estava na cama dum hotel com ele. A Márcia o encantara de tal modo que passara dois meses seguidos viajando com ela em praias desertas onde transavam dez horas por dia. E era só aquilo, só prazer, só o que seu pai lhe havia dito, só o sexo pelo sexo, depois dos dois meses se sentiu um prostituto, nas mãos duma prostituta e resolveu sair daquela vida e voltar para a Kate. Como? Estava sem noção, como se estivesse no seu direito e na sua despedida de solteiro, que durara dois longos meses! A Kate, já fora motivos de piadas, já chorara bastante, mas agora estava dura como uma pedra e resolvida de sua vida: seria feliz, era seu direito.
Passara-se um ano e ele sempre corria atrás da Kate, mas ela, sempre firme, lhe evitava, não mais lhe queria, não mais lhe amava, o amor tornara-se ódio, o ódio fizera perder, tudo para sempre... Estava consumado.
Ele precisava fazer alguma coisa e faria. Estava determinado, resoluto, nada mais o abalaria, aquilo afundar-se-ia num passado que se passaria, afinal de contas é típico do passado o simples passar. Já não via a Márcia faz tempo, ele não interessava mais. Quanto a Kate, Deus! A Kate! As lágrimas lha caíam dos olhos árduos e vermelhos, inchados já estavam da dor. Sua mãe... Ele precisava. De fato, o faria, era homem o suficiente para aquilo. Pegara um taxi, chegaria mais rápido ao destino...
O taxi parara frente a um prédio enormemente grande, era a Sudene, na BR-101 sentido sul, próximo à Universidade Federal de Pernambuco. Subira as enormes escadas da frente se dirigindo à portaria.
- Bom dia, seu Alex, como vai? Disse o porteiro.
- Vim vê-la. Ela está aí, você sabe?
- Quem? Ah, a dona...
- É, Bernardo, ela mesma, está ou não está?
- Sim, como o senhor sabe, está em expediente, no ante-penúltimo andar, o senhor pode a esperar na recepção.
- Ela me mandou chamar, me autorize a subir.
- Mas se ela lhe mandou chamar quem tem que autorizar é ela! Vou ligar pro ramal dela...
- Ande homem, deixe de besteiras, ela me mandou subir.
- O senhor está bem?
- Você é médico? Ande logo com isso não agüento mais esperar.
- O que está havendo, senhor Alex? O senhor pode me dizer? Não posso lhe mandar subir assim, até porque o superintendente está em visita hoje e, sabe como é não é?
- Bernardo, pelos velhos tempos, você me faz um favor, eu lhe faço outro; você me deixa subir, eu lhe recompenso mais tarde, naquele barzinho.
- Quanto?
                - Mil! Falara o primeiro número que veio à mente.
            Bernardo se encantara com aquele número e todos os seus zeros. Imaginava-se livre de certas dívidas, Ah, coisa boa!
            - Como queira senhor Alex, pode subir, pode subir!
            Alex subira, havia pego o primeiro elevador que abrira as portas no térreo, eram muitos andares e por mais rápida que fosse a máquina ele se angustiava, se arrependia, queria descer, não queria mais continuar com aquilo. “Força, homem, força! Es muss sein, es muss sein!”, repetia aquilo vorazmente ao passo que se lembrava quando seu pai a pretexto de lhe dar a aula de piano no dia em que ele queria assistir a um jogo de futebol na casa de colegas, lhe repetira freneticamente as palavras de Beethoven, de quem ele era fam: “Es muss sein, filho, es muss sein!” o que significava: “É preciso, sim, é preciso”. Dava-lhe pouco a pouco uma dor no estômago, uma angústia no peito... Ele começara a chorar e chorar amargamente. Era preciso, droga! O elevador parara. Era o ante-penúltimo andar daquele prédio monstruoso. Sua mãe... Mas era preciso. Respirou fundo. Será que seria bom vê-la? Não!
            Andara alguns passos até a sacada. A paisagem era bela. O Recife diante de si, ao menos uma parte dele. Do outro lado o Hospital das Clínicas, a Universidade, a vida. As pessoas seguindo seus caminhos diversos, os passantes... Era preciso. Ela não mais o amara. Ele não mais se amara, não como antes. Isso era por amor à sua própria vida...O vento batia-lhe na face ressecada.
            - Mortos não pagam dívida, Bernardo!
            Dito isso saltara do prédio a baixo. O vento batia-lhe na face com força, a gravidade puxava-lhe para baixo como um polvo puxa a presa que agarra... O chão! Fechara os olhos...
            ... Está consumado.

            No chão todos se ajuntavam para ver o infeliz. “Ele se suicidou!”, “Meu Deus ele se suicidou!”, “Isso é um crime!”, “Isso não é um crime, a quem devemos aplicar a pena, seu jeca? Ele está morto, pena capital!”. O Bernardo emudecera telefonara à pressas para o celular de dona Márcia.
            - Mas ele disse que queria falar com a senhora! Disse que a senhora o havia chamado!”
            - Bernardo ele veio aqui se matar, não falar comigo, usou isto como álibi para entrar sem maiores problemas, deixemos essa história na surdina, a polícia já já poderá levantar inquérito se a família achar que não questão de suicídio. Eu não quero comprometer meu trabalho, não posso. E até porque, você seria penalizado. Esqueçamos isso, ele se foi. Mortos não falam, nem pagam suas dívidas.
            Bernardo emudecera mais uma vez, se tocara que não receberia dinheiro algum. “Infeliz!” dissera rangendo os dentes.
            Da sacada, Márcia olhava a multidão as ambulâncias e a polícia, também aquele corpo disforme e esbugalhado no chão. De súbito sentira a culpa por aquilo tudo, sim era dela a culpa, dele também, mas ela tinha sua parcela, percebera que quanto mais olhava o abismo, mas ele, o abismo, olhava para dentro dela. Retirou-se.
            “O amor não tem meio termo: ou se perde, ou se salva”.

Mario Filipe dos Santos, Maio de 2011.        

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