terça-feira, 7 de junho de 2011

Crônicas de Primeira Viagem: O causo do demo


“O mito é o nada que é tudo”
Fernando Pessoa.


   E
ra noite de sexta-feira treze, todo mundo sabe o que significa isso. Significa tudo e nada ao mesmo tempo. No interior, é noite maldita, como eles dizem “mardiçoada!”, no Recife poderíamos dizer que, por ser sexta-feira, é mais uma noite de consolação pra quem trabalha feito um louco durante a semana, dia da “madeira” como se diz, isto é, noite de se divertir, beber, “encher a cara!”, ou seja, tudo de bom. Quanto ao ser treze a data, não há muito que se dizer disso, afinal de contas, o capitalismo ainda não inventou nada para vender em especial nesse dia. Simplório o capitalismo. Mas no interior, a data é coisa séria. Lá pras bandas de Umarí ou São Vicente, costumam ocorrer muitos quiproquós numa noite como esta. Para piorar as coisas ainda mais, a lua estava tão cheia e amarela...
 – Isso aí é causo do demo, dizia seu Zé da viola, na calçada de casa, para umas senhoras religiosas muito devotas de nosso senhor, e continuava: É causo de se alarmar! A lua, Deus a fez branca, mas o demo que tudo entorta faz com que a pobre fique amarela a contra gosto de Deus, da cor do sangue venenoso do mardito!
 – Virge santa!
            – Ave Maria! Vixi! Com um causo desse nós num pode ficar por aqui, pode?
 – Não pode, não. Dizia taxativo o velho homem com seu violão abaixo do braço esquerdo e o direito a segurar o cachimbo herdado de seu avô, para depois continuar o falatório: Um primo meu, lá das bandas de Sirigi, disse que viu numa noite dessas um bicho muito do estranho andando de duas patas tentando se passar por home pra querer entrar na igrejinha da cidade...
            – Virge santa!
 – Ave Maria! Continue seu Zé, faz favor, continue. Estava morta de curiosidade a das Dores, enquanto que a Zefina apenas ouvia com os olhos esbugalhados e um aperto no coração.   
 – O disgramado era esperto, continuou o velho empolgado, em vez de o endiabrado vir pelos lados do mercado e da praçinha como tudo que é gente faz, veio pelo lado duma ponte de pedra que lá tem, por cima do canal da cidade, como quem vinha de fora, lá da estrada de São Vicente...
            – Aié, é? E veio mermo de São Vicente o disgramado?
– Que nada! Cês num ouviro o padre Antonio na missa de ontem não, foi? O bicho ruim é mentiroso e tinhoso demais pra ser sincero, ele engana! Teve gente que disse que o coisa ruim tinha vindo da rua da escola que fica por trás daquela igreja dos crentes e vai dar lá na cachoeira...
– Dever ser coisa dos crente!
– Que é isso muié? Tás doida é?
– Oxente! Ocê num ouviu o padre Antonio na semana passada, não? Ele disse que esses protestantes, crentes, tão com nada e tem parte com o demo! Só pensa em dinheiro e que a santa madre igreja pensa em tudo menos na avareza do dinheiro.
– É verdade, disse pensativa a Zefina que só prestava atenção e mais nada até agora.
– Pode ser, mais o fato é que o demo chegou até a porta da igreja que fica bem no meio da praça e disse a um fiel de nossa senhora que tinha ido buscar o Damião, e despois foi embora, se arredou de lá...
– Embora?
– Pra donde?
– Num se sabe. Ninguém sabe. Despois de dois dias, o Damião apareceu morto lá pras banda de Paudalho, tinha ido arresorver uns problema e de lá num saiu.
– Morreu de quê? Perguntara ofegante a das Dores.
– É, de quê? Imitara a Zefina.
– O delegado da região mandou o inquérito pro juiz dizendo que se tratava de ritual satânico.
– Ave nossa senhora de Lourdes, das Dores e de Fátima!
– Ave, Ave!
– Pois é muié, ocês tem ainda arguma dúvida de que é noite muito mardita essa?     
            Dá para se ver que elas estavam por muito convencidas do causo. Seu Zé, feliz por ter convencido esboçava um sorriso maroto de satisfação inconsciente, não sabia o porquê daquele sorriso, pois ele mesmo cria no que dissera, ao menos assim lhe parecia.
            A lua subia ainda mais e tomava o céu, clareando cada vez mais a cor do brilho que a ela o sol emprestara. Os três cidadãos interioranos já não estavam mais tão à vontade com aquilo e os cachorros da vizinhança já começavam a latir sem parar e uivar.
– Zefina! Das Dores! Isso num é normá!  Alertara o velho quase se borrando de medo e já de pé, pensando com muita precisão que qualquer movimento estranho que pudesse ocorrer do lado da mata, iria dar no pé e deixar as beatas pro demo.
De repente, ouvi-se um gemido na direção da mata. Do nada um grito!
            – Jesus, Maria e José! Vamos embora bando de muié besta! É o demo!
            Levantaram-se as duas senhoras num salto só e saíram a correr pela rua de pedra até chegar cada uma a sua porta, entrar e fechá-la com arroubos atrás de si. O seu Zé? Já estava em casa assim que alertara as damas. Aquele lá corria que era uma beleza, havia ganho vários campeonatos de corrida no colegial, e, quando jovem, passara por um longo sufoco para provar à comunidade que suas habilidades não eram sortilégios do demo. Por isso havia estudado muito tempo com o padre da região, para poder se defender na praça pública, desde então, em matéria de demonologia, qualquer um ia buscar sua ajuda para tentar assim desafogar a igreja nas horas do confessório.
            A rua ficara deserta. Num silêncio sepulcral. Todos os que fora estavam entraram sem demora ao ouvir gritar o especialista, afinal, era sexta-feira treze, todos só haviam saído porque seu Zé também saíra, e se ele entrou, já era chegada a hora de todos entrarem...
            É impressionante a crença. Seduz, faz crer e depois aprisiona.
            Com poucos minutos do acontecido saía da mata o Pedro Lourenzo, que era uma espécie de Pedro Malazarte da região. O pobre saía com uma cara de alívio tão bom, tão impressionante, sentia-se como se tivesse ganho na loteria, embora não fosse esse o caso, estava alegre do mesmo jeito, é que depois de três semanas sem evacuar, por conta de seu problema de prisão de ventre, conseguira quando fora à mata à caça de passarinho desobstruir o intestino grosso! Mais tarde os moradores souberam que o gemido tinha sido no início da evacuação e o grito quando o trem lhe saiu dos fundilhos!
            Que coisa aquela hein! Ainda dizem que nós somos a imagem e semelhança de Deus, nós os cagadores! Sim, por que qual é o ser humano que não evacua? Ora, que é isso! O papa evacua, a presidenta da república e também aquele professor arrogante da faculdade! Todos nós, unidos pela merda. Bem dissera o nobre Voltaire: “Tu, imagem de Deus, sentado em tua privada!”, talvez a mais provável verdade seja que Deus é que é a nossos olhos, inconscientemente, feito a nossa imagem e semelhança!
            Todavia, o povo todo da região, seu Zé da viola, dona Zefina e a das Dores, não notaram esse lado do caso, não chegaram a cogitar isto o que aqui e cá entre nós cogitamos você, leitor atento, e eu. A conclusão que todos tomaram dentro de suas mentes não se sabe, mas com certeza não fora a mais viável possível. Mais tarde e numa noite parecida àquela, ouvia-se o seu Zé dizer que aquela prisão de ventre do Pedro Lourenzo e sua conseqüente dor de barriga e evacuação na mata era coisa muito estranha, era um causo do demo. Segundo ele, isso era mais claro que o dia. Aquele passarinho caro e bonito que havia levado o Pedro pra dentre das matas só podia ser mensageiro do demo, o que o bicho ruim queria mesmo era comer das merdas do Pedro, o que segundo um tal padre exorcista que passava pela região é normal e muito bom até para o demo, afinal de contas, ele, o demo, tentava ser melhor ao mesmo tempo em que tentava imitar O criador, tanto é que fora fazer tal coisa para imitar a ordenança de Deus a Ezequiel que teria que comer pão de cevada tostado junto a excrementos, ou seja, merdas, de homens, e tiradas na hora! Dissera o tal padre até o texto para quem tivesse dúvida: Ezequiel cap. 4!
            Aquela explicação satisfizera a todos na região, menos ao Pedro que se sentiu de certo modo comido pelo demo. E foi assim que o acontecido muito bem explicado pelos fatores fisiológicos corporais, foi explicado, na preferência de todos como um causo do demo.
Mario Santos, Dezembro de 2010.

Nenhum comentário:

Postar um comentário